Ações efetivas para corrigir a falta de equidade no acesso e permanência escolar para indígenas, negros e quilombolas foram defendidas por especialistas que participaram de audiência pública da Comissão de Educação e Cultura (CE), nesta segunda-feira (23). Este foi o quinto debate do colegiado sobre o projeto de lei do governo ( PL 2.614/2024 ), que institui o novo Plano Nacional de Educação (PNE) 2024-2034 e presidido pelo senador Flávio Arns (PSB-PR).
Entre os 18 objetivos do projeto de lei para o novo PNE, que ainda tramita na Câmara dos Deputados, está o que garante o “acesso, a qualidade da oferta e a permanência em todos os níveis, etapas e modalidades na educação escolar indígena, na educação do campo e na educação escolar quilombola”. No entanto, os debatedores alegaram que não basta apenas inserir o dispositivo no texto, é preciso priorizar efetivamente essa política pública com ações específicas que estejam conectadas à realidade dessa população mais vulnerável.
A coordenadora da União de Núcleos de Educação Popular para Negras e para a Classe Trabalhadora (Uneafro), Adriana de Cássia Moreira, destacou que o acesso à educação no Brasil é marcado por desigualdades regionais, socioeconômicas e de raça e cor. Em sua avaliação, o novo PNE precisa levar em consideração a vulnerabilidade dessas pessoas para que as famílias superem os desafios de manter a criança ou o jovem na escola.
Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) sobre a educação infantil, por exemplo, mostram que, entre os 25% mais pobres, 26% das crianças de zero a três anos estão matriculadas em creches. Já entre os 25% mais ricos, esse número chega a 55%. As crianças negras representam 45,1% do total de matrículas em creches.
— Por exemplo, se na família tem um indivíduo que está privado da sua liberdade, e [...] esse é um elemento que impacta do desenvolvimento de suas crianças, então a gente tem que assegurar que essa família, que essa criança tenha uma vaga em creche — afirmou.
Já a taxa de analfabetismo entre pretos e pardos, de acordo com o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é mais do que o dobro das observadas entre os brancos, observou Adriana Moreira. Enquanto o índice de pretos e pardos que não sabem ler e escrever é de 10,1% e 8,8%, respectivamente, o percentual entre pessoas brancas é de 4,3%. E a taxa entre os indígenas é quase quatro vezes maior.
Mesmo reconhecendo que, entre 2010 e 2022, a diferença entre as taxas de analfabetismo de brancos e pretos diminuiu de 8,5 para 5,8 pontos percentuais, Adriana Moreira considera importante que o PNE considere o princípio de equidade racial e de gênero como uma estratégia fundamental para constituir crianças e adolescentes negros como sujeitos da aprendizagem no sistema nacional da educação.
Isso significa, explicou, que as políticas de alfabetização devem levar em consideração elementos de gênero e raça. Para ela, a Política de Alfabetização na Idade Certa não está conseguindo reduzir os padrões de desigualdade no acesso à alfabetização porque somente leva em consideração um sistema educacional e cognitivo para a preservação de uma "cultura de branquitude", sem considerar os desafios e vulnerabilidades dos que estão fora dessa realidade.
— Se você não considerar todos esses elementos, atravessando todo o processo de alfabetização, essas crianças terão mais dificuldade de se alfabetizar. Portanto, abolir a ideia de alfabetização na idade certa e construir processos de alfabetização a partir da perspectiva que está colocada nas diretrizes curriculares para as relações étnico raciais é fundamental para [...] reduzir a distorção dos padrões de acesso a alfabetização, de desenvolvimento — continuou.
A representante do Fórum Nacional de Educação do Campo (Fonec), Mônica Castagna Molina, apontou a necessidade de o projeto não perder de vista o que foi aprovado na Conferência Nacional de Educação (Conae), etapa que embasou as discussões e a elaboração do novo PNE no âmbito do grupo de trabalho do Ministério da Educação. Ela disse ser importante ter, de fato, um conjunto de política afirmativas para reduzir as disparidades na garantia do ensino fundamental e médio para essas populações.
— Os sujeitos do campo, os sujeitos indígenas, os sujeitos quilombolas, os agricultores familiares tradicionais, todos eles, de fato, infelizmente, enfrentam ainda uma enorme disparidade na garantia do acesso e da permanência e conclusão dos anos iniciais e finais do ensino fundamental e do ensino médio. É muito importante que a gente possa, de fato, priorizar as periferias urbanas, as aldeias indígenas, as zonas rurais, os quilombos, as comunidades tradicionais.
Para se avançar nessa redução da desigualdade no ensino, o senador Flávio Arns lembrou da importância de se aprovar, até antes mesmo do novo PNE, o Projeto de Lei Complementar (PLP) 235/2019 , já aprovado no Senado, que institui o Sistema Nacional de Educação (SNE). Apresentado pelo próprio senador, a proposta alinha as políticas, programas e ações da União, do Distrito Federal, de estados e de municípios, em articulação colaborativa dos entes da Federação na área educacional.
— Eu quero lembrar de que o que a execução do PNE é de responsabilidade tripartite. Ou seja, é de responsabilidade da União, dos estados e dos municípios. E para que isso aconteça, para que a educação nas comunidades possam acontecer com qualidade, existe a necessidade e que consta no Plano, que é a criação do Sistema Nacional de Educação. Para que se saiba exatamente qual a responsabilidade, por exemplo, em termos de formação de professores para a educação do campo e para a educação quilombola. Qual a responsabilidade da União, dos estados e dos municípios?
De acordo com o Censo Escolar de 2022, das 178,3 mil escolas de ensino básico, 1,9% (3.541) estão localizadas em terras indígenas; e 2% (3.597) oferecem educação indígena por meio das redes de ensino. Entre as demandas urgentes da educação indígena, citadas pelo coordenador do Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena (FNEEI), Arlindo Baré, está a garantia do acesso e da permanência dos alunos indígenas, desde a educação básica ao ensino superior; a priorização do orçamento para a política de educação nos territórios étnicos, assegurando autonomia de gestão; e o investimento na educação digital.
— Eu entendo muito que a gente precisa promover uma educação digital para um uso crítico, reflexivo, étnico das tecnologias de informação nas comunidades indígenas. Por quê eu considero isso importante? Para além de trazer coisas que já estão muito evidentes, como a precarização das escolas indígenas, muitas delas não são, de fato, uma escola adequada e, principalmente, não respondem para o que seria uma estrutura educacional na concepção dos povos indígenas. Então, para além disso, garantir esse acesso vai garantir a qualidade e a permanência em todos os níveis — disse.
Apesar de elogiar o dispositivo do projeto que estabelece políticas que viabilizem a construção ou a reestruturação das escolas do ensino fundamental e médio, Mônica Castagna Molina advertiu que, atualmente, está acontecendo um “intenso processo de fechamento das escolas do campo”. Ela pediu atenção dos parlamentares para reverter esse problema.
Segundo Molina, em 1999, existiam 102 mil escolas do campo, e atualmente o número não chega a 40 mil. O que também refletiu na redução de matrículas das pessoas do campo. De 2009 a 2019, foram mais de um milhão de matrículas a menos no ensino camponês, com uma média de três mil escolas sendo fechadas a cada ano. O que tem se somado, segundo a especialista, nos fatores que contribuem para a desistência escolar.
— O fechamento dessas unidades escolares significa não só a impossibilidade da continuidade da escolarização do sujeito camponês, mas a dissolução dessas unidades. Nós sabemos o esforço que essas famílias fazem para que os jovens e as crianças do campo continuem estudando e o fechamento das escolas é um grande passo para desterritorialização, para não continuidade da escolarização — observou.
A taxa de analfabetismo entre a população quilombola é 2,7 vezes maior que a média do Brasil. Enquanto em todo o país o índice é de 7%, na população quilombola alcança 18,99%. O dado também faz parte do Censo 2022. O país possui cerca de 1,3 milhões de quilombolas, em mais de oito mil localidades.Para a professora quilombola e integrante do Coletivo Nacional de Educação da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), Shirley Pimentel de Souza, a oferta de uma educação de baixa qualidade, atrelada ao fechamento das escolas nas localidades e as disputas em torno dos territórios quilombolas são os principais fatores que contribuem com esses dados.
— O impacto do fechamento das escolas é uma rede que leva a pessoa a desistir dos estudos. Então é você sair mais cedo, é você não ter uma educação de qualidade e é você chegar num espaço escolar que, muitas vezes, é um espaço extremamente violento […]. Então quando você pesa todo esse impacto do deslocado mais cedo, não se alimentar bem e sofrer violências diversas nesse espaço, a desistência é um caminho muito comum — lamentou.
Em outra frente, os especialistas defenderam o incentivo à capacitação dos professores indígenas, quilombolas e do campo, bem como a sua manutenção nas escolas das comunidades. Para eles, essa permanência e conexão com a cultura local garantirão a redução do fechamento de escolas, da evasão e do analfabetismo. Eles ainda defenderam um plano de carreira para que esses profissionais não fiquem sujeitos a vulnerabilidade dos jogos políticos locais.
— A gente entende que, se tem um professor quilombola, do território quilombola, ele vai ter uma incidência muito maior de garantir que essa escola permaneça aberta. Nas nossas experiências, quando o professor é da própria comunidade, [...] tem menos rotatividade de professores, ou seja, esse professor ele não termina o ano letivo e não fica dependendo do contrato do vereador tal, do prefeito tal, não fica tão vulnerável a esse jogo político-partidário que acontece nos municípios. Ele se vincula àquele território, ele mantém um processo de formação continuada de professores, quer seja ofertada pelas universidades ou ofertada pelo próprio movimento quilombola. Ou nos casos raros ainda, pela rede municipal de educação. Isso garante uma continuidade da implementação de uma educação escolar diferenciada nesses territórios quilombolas — disse a representante do Conaq.
Ainda na avaliação de Shirley de Souza, o novo PNE também precisa enfrentar o desafio do ensino médio "de forma séria e com os instrumentos eficazes". No caso das comunidades quilombolas, ela defendeu um ensino presencial, que dialogue com a realidade das comunidades. A professora argumentou que muitos cursos oferecidos através do Ensino à Distância (EAD) estão completamente desconectados da realidade de cada localidade.
Ela também disse ser preciso ofertar materiais didáticos elaborados a partir do ponto de vista dos próprios educadores quilombolas. Para ela, fortalecer a educação dentro dessas comunidades é uma forma de manter a autonomia do processo de gestão territorial e da sua sustentabilidade, sem correr os riscos da pressão da produção da monocultura.
— É importante que essa educação seja territorializada, contextualizada, discutida com as comunidades quilombolas. E a gente tem no Brasil uma infinidade de comunidades. O contexto das comunidades quilombola da beira do Rio São Francisco, de onde eu falo, é diferente das comunidades quilombolas do Amazonas, que é uma outra realidade. Então o material didático não pode ser o mesmo, o tipo de formação não pode ser o mesmo. A gente tem algumas coisas em comum, mas tem especificidades territoriais.
O novo PNE, com diretrizes para os próximos dez anos, cria 58 metas para a educação, com 252 estratégias para alcançá-las. Atualmente, vigora o PNE 2014-2024, que foi prorrogado até 31 de dezembro de 2025, enquanto o projeto de lei é analisado.
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